Não é de hoje que a teoria do fato consumado em matéria ambiental vem sendo sumariamente rechaçada pelos Tribunais de todo o país.
Na visão dos aplicadores do direito, admitir-se referida teoria equivaleria a consentir com o “direito de poluir”, ou, nas palavras do Min. Herman Benjamim, a “teoria do fato consumado em matéria ambiental equivale a perpetuar, a perenizar suposto direito de poluir, que vai de encontro, no entanto, ao postulado do meio ambiente equilibrado como bem de uso comum do povo essencial à sadia qualidade de vida” (AgInt nos EDcl no REsp n. 1.447.071)
Mas, afinal, o que significa a teoria do fato consumado?
A ideia de “fato consumado” iniciou por situações de inércia do Estado, por longo lapso temporal, que passaram a ensejar uma espécie de “direito adquirido” do jurisdicionado, no sentido de se permitir que este continue atuando nos moldes que vinham sendo “tolerados”, ainda que eventualmente de forma precária ou até mesmo contra legem.
Exemplo clássico de aplicação da Teoria do Fato Consumado está no célebre acórdão de relatoria do Ministro Humberto Martins, que, no REsp 709934, assim entendeu sobre o tema:
Impõe-se, no caso, a aplicação da Teoria do Fato Consumado, segundo a qual as situações jurídicas consolidadas pelo decurso do tempo, amparadas por decisão judicial, não devem ser desconstituídas, em razão do princípio da segurança jurídica e da estabilidade das relações sociais. Recurso especial conhecido em parte e improvido. (REsp 709.934/RJ, Rel. Ministro HUMBERTO MARTINS, SEGUNDA TURMA, julgado em 21/06/2007, DJ 29/06/2007, p. 531, grifos nossos)
Diante dessa tendência, a “teoria do fato consumado” passou a ser arguida como tese de defesa nos Tribunais em diversas situações, como, por exemplo, para processos envolvendo concursos públicos, ingresso em universidades, colação de grau, etc.
A tese acabou ganhando respaldo também no Direito Ambiental. Profissionais da área passaram a utilizá-la – vulgarizando-a, diga-se de passagem – para dar guarida a situações consumadas, ainda que ilegais: prédios que eram ultimados mesmo com embargos administrativos e/ou judiciais, construções em áreas cujo zoneamento jamais permitiu aquela atividade, dentre tantas outras.
De certa maneira, ainda que de forma excepcionalíssima, os Tribunais vinham aceitando essa tese, a fim de, em determinados casos, salvaguardar situações consolidadas no tempo.
Mas, referida teoria pode/deve ser aplicada indiscriminadamente em demandas que envolvam o Direito Ambiental?
A fim de solucionar essa controvérsia, e extirpar o chamado “direito adquirido de poluir”, o Superior Tribunal de Justiça editou a Súmula n. 613, com a seguinte redação: “Não se admite a aplicação da teoria do fato consumado em tema de Direito Ambiental”.
Ocorre que, da interpretação literal do texto sumular, situações genericamente consolidadas/consumadas em matéria ambiental, não mais poderão ser arguidas como tese de defesa e/ou reconhecidas para salvaguardar eventuais direitos.
Mas será que é esse o intuito da Súmula?
Ora, o que são os chamados núcleos urbanos informais, nos termos do art. 11, II e III, da recentíssima Lei de Regularização Fundiária (Lei 13.465/2017), senão situações jurídicas consolidadas pelo decurso do tempo?
Ou ainda, os ditames dos artigos 23 e 24 da também recentíssima Lei Federal nº 13.655/2018 que, ao alterar dispositivos da Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro, previu expressamente a necessidade de observância a situações plenamente constituídas/consolidadas/consumadas?
E, por fim, o recente julgamento do STF sobre a constitucionalidade do Novo Código Florestal (Lei 12.651/2012), que anuiu com 32 dos 40 dispositivos impugnados (http://buzaglodantas.adv.br/2018/03/stf-encerra-o-julgamento-sobre-o-novo-codigo-florestal/), donde incluem-se os artigos relativos à regularização urbana, reserva legal, dentre outros?
Ora, embora absolutamente louvável a intenção da Súmula n. 613 do STJ, cotejando-a com as recentíssimas normas em vigor, tem-se por certo que referido enunciado sumular não poderá ser aplicado indistintamente, mas de acordo com o caso concreto, nas hipóteses em que haja, de fato, má-fé por parte do jurisdicionado e/ou absoluta ilegalidade dos atos.
Não se pode ignorar que situações – seja no âmbito do direito civil, penal, e até mesmo ambiental –, muitas vezes com o aval do próprio Poder Público e sem má fé do jurisdicionado, acabam se consolidando no tempo, como por exemplo: empreendimentos que são aprovados e licenciados, e têm seu zoneamento alterado no interregno das obras; mudanças repentinas de normativas e/ou entendimentos jurisprudenciais sobre determinados espaços; perda absoluta da função ambiental de algumas áreas; dentre tantas outras.
Essas situações não podem ser simplesmente ignoradas ou extirpadas do ordenamento jurídico, devendo ser analisadas e balizadas em cada caso específico.
É claro que a edição da referida súmula é absolutamente salutar nos dias de hoje, como forma de coibir o desenfreado uso dos recursos naturais ainda existentes (principalmente no Brasil) e não dar guarida ao chamado “direito de poluir” – que, por óbvio, não existe.
No entanto, o novel enunciado deverá ser interpretado de forma genérica e de maneira a se amoldar aos contornos das também recentes normativas editadas, que parecem se contrapor ao teor da Súmula – se interpretada ao pé da letra.
O que se espera é que referidos enunciados (leis e súmula), possam ser interpretados da melhor maneira possível, e de forma a garantir o equilíbrio entre meio ambiente e a viabilidade das atividades econômicas.
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