A correta disciplina jurídico-ambiental que deve ser aplicada às áreas urbanas consolidadas inicialmente consideradas áreas de preservação permanente (APP), é tema que há muito vem gerando calorosos debates, e que ganhou novo fôlego com a promulgação do novo Código Florestal – Lei n. 12.651/2012.
Como se sabe, a nova Lei definiu, em seu artigo 3º, inciso II, área de preservação permanente como sendo a “área protegida, coberta ou não por vegetação nativa, com a função ambiental de preservar os recursos hídricos, a paisagem, a estabilidade geológica e a biodiversidade, facilitar o fluxo gênico de fauna e flora, proteger o solo e assegurar o bem-estar das populações humanas”.
A partir da mencionada redação, pode-se concluir, primeiramente, que o legislador quis explicitar que o que deve ser objeto de especial preservação não é a vegetação que cobre a região, mas sim a área em si, independente da cobertura vegetal nativa porventura existente.
Por outro lado, a norma parece intencionalmente destacar a necessidade de que o local desempenhe função ecológica que justifique a preservação permanente. Em outras palavras, a função ambiental está inserida no próprio conceito de APP, sendo que esta não possui razão de ser sem aquela.
Diante disso, surge o questionamento: em se tratando de áreas urbanas consolidadas, nas quais ocorreu, há muito, o desvirtuamento das características ecológicas incialmente existentes no local – sem possibilidade de reversão – e o processo de urbanização não mais pode ser desfeito sem prejuízos sociais, ainda existiria razão para se justificar a manutenção das APPs?
Atentos a essa realidade não apenas normativa como social, muitos Tribunais vêm adequando seu entendimento, no sentido de reconhecer a legalidade de empreendimentos e construções localizados em áreas urbanas consolidadas e afastando a exigência da manutenção integral das APPs nessas hipóteses. Reconhece-se que a vedação a modificações estruturais do meio, nesses casos, não traria qualquer benefício ao meio ambiente ou à coletividade.
Nesse viés, podemos citar recentíssimo julgado do Tribunal Regional Federal da 5ª Região (n. 2009.83.08.000068-2, AC552683/PE), que entendeu válida a ocupação da área de preservação permanente às margens do Rio São Francisco, por se tratar de área consolidada.
Em seu voto, o Relator, Desembargador Federal Paulo Roberto de Oliveira Lima, afirmou que o loteamento objeto da discussão encontrava-se em uma área amplamente degradada, na qual funcionava, desde a década de 1950, uma mineradora, atividade que redundou no desmatamento total e absoluto da vegetação nativa local. Outrossim, o loteamento havia sido aprovado pelo Município de Petrolina em 2008, o qual exigiu apenas a preservação de 100 metros lineares ao rio, em consonância ao que dispunha a legislação municipal da época.
Assim, o voto considerou que o local no qual se implementou o empreendimento já se encontrava, há muito, impregnado de atividades urbanas, estando rodeado por diversas edificações, sendo totalmente descabido cogitar da aplicação da restrição constante do Código Florestal nessas circunstâncias.
Desse modo, concluiu que o loteamento “se localiza em área consolidada e onde os danos sociais não justificariam uma reversão à antiga composição vegetal. As vantagens ambientais não justificariam o sacrifício social”.
Como se vê, a decisão em questão reconheceu a necessidade de existir uma real função ecológica a justificar a manutenção das áreas de preservação permanente, o que indubitavelmente não se observa em se tratando de área urbana consolidada.
Conclui-se, nesse sentido, que ainda que o tema comporte opiniões opostas, a condição de que as APPs ostentem, de fato, função ecológica vem ganhando espaço na doutrina e nos Tribunais, podendo representar um argumento válido para a regularização de áreas consolidadas e dos empreendimentos nelas existentes.
É importante ressaltar que a consolidação de áreas de loteamentos e/ou empreendimentos imobiliários ao longo dos cursos
d´água, em áreas de Área de Preservação Permanente (APP), com aval do judiciário, não previne inundações, ou outros desastres e riscos ambientais relevantes.
Citam-se neste sentido, prejuízos de municipalidades e de seus habitantes, quando os rios extravasam de suas calhas e avançam sobre as cidades, demolindo edificações e em algumas oportunidades tirando a vida de pessoas, que por ali transitam ou mesmo habitam essas áreas.
Na realidade, áreas ao longo/margens de rios devem ser protegidas e seus usos e ocupação planejados, para que sirvam de real proteção a própria cidade, aos seus habitantes e ao meio ambiente. Não são usos pretéritos, que devem ser condicionantes dos usos futuros, mas temas relacionados às mudanças climáticas, por exemplo…
Assim, tanto áreas consolidadas como novas áreas em faixas de APP devem ser revistas e ocupar um capítulo a parte do Plano Diretor, visando sua proteção e conservação, não somente em termos ecológicos mas e, principalmente, socioambientais. Afinal, estamos lidando com o ambiente urbano, com a qualidade e condições dos seus espaços, com a sua manutenção e sua gestão de forma economicamente viável, objetivando as melhores condições de vida de seus cidadãos…
Muito boa matéria. Ainda assim, mesmo com algumas décadas de discussões, os legisladores não conseguiram ser claros, aflorando a oportunidade de interpretações baseada em cunhos pessoais e culturais. Não defendo o sim, nem o não. Defendo é a queda desse sistema semântico o qual baseia-se nossas leis. Lamentável.
Excelente observação, Renan. De fato, apesar das lacunas apontadas no antigo Código Florestal e da promessa de que o novo diploma sanasse essas omissões, a dúvida permanece. A ausência de um conceito claro do que seriam os espaços especialmente protegidos é prejudicial a todos, dando margem a diferentes interpretações e gerando uma indesejável insegurança jurídica.