A recente decisão proferida pela Egrégia Primeira Turma do Superior Tribunal de Justiça (STJ), no âmbito do AREsp n. 1886951, suscita uma questão de suma importância no âmbito do direito administrativo, ambiental e da tutela do patrimônio histórico-cultural: a atribuição de responsabilidade pela reparação de danos ambientais ocasionados a bens de natureza histórico-cultural pelo expropriado (proprietário anterior) em hipóteses de desapropriação pelo Poder Público.

A desapropriação, enquanto instrumento jurídico, é um mecanismo pelo qual o Estado pode retirar a propriedade de um particular para atender ao interesse público, conforme previsto na Constituição Federal e regulamentado pelo Decreto-Lei n. 3.365/1941.

O caso ora em análise versou sobre a desapropriação de um imóvel tombado situado no município do Rio de Janeiro/RJ, em que o ente municipal desapropriou o imóvel para a implementação do Projeto “Porto Maravilha”, no contexto de programa de habitação de interesse social.

Contudo, o Ministério Público do Estado do Rio De Janeiro já havia ajuizado uma ação civil pública em razão da existência de danos no imóvel de importância histórico-cultural, os quais, alegadamente, decorreriam de sua não conservação, pleiteando a condenação à execução de projeto de recuperação do bem e ao pagamento de indenização a título de reparação dos danos morais coletivos

Nesse sentido, a Corte Superior decidiu que, após a efetivação da desapropriação, o antigo proprietário não pode ser responsabilizado pela reparação dos danos ambientais (ao patrimônio histórico-cultural) por ele causados no bem – antes da desapropriação.

O Tribunal Superior entendeu, especificamente, que a condenação à parte desapropriada para custear a recuperação do imóvel resultaria em uma infração ao princípio do non bis in idem (proibição de dupla punição pelo mesmo fato). Isso ocorreria porque o proprietário sofreria uma dupla penalização pelo mesmo motivo: primeiramente, receberia uma indenização já reduzida devido ao passivo ambiental existente e, em seguida, seria compelido a arcar novamente com esse mesmo passivo no âmbito do processo judicial.

Assim, o paradigma em comento estabelece um precedente de significativa relevância, redefinindo os contornos da responsabilidade ambiental em casos de desapropriação de bens. Até porque, no âmbito do direito ambiental – que se alinha ao caso, o tombamento é um dos instrumentos do chamado “meio ambiente cultural” –, a responsabilidade civil tem características peculiares, fundamentadas no princípio do poluidor-pagador e na teoria do risco integral, o que torna a questão ainda mais complexa. Nesses casos, tem prevalecido o entendimento de que aquele que deu causa ao dano ambiental, deve ser instado a repará-lo – mesmo que, por exemplo, tenha havido a posterior venda do bem gravado com o passivo.

Nessa ordem de ideias, cumpre salientar que o Superior Tribunal de Justiça reconhece o caráter propter rem das obrigações ambientais, consoante a Súmula n. 623 e o Tema Repetitivo n. 1.204. Tal entendimento implica que essas obrigações podem ser impostas tanto ao proprietário atual quanto aos anteriores (desde que esses “proprietários anteriores” tenham contribuído para ao dano ambiental). Nesse diapasão, seria possível, a priori, responsabilizar o proprietário de um imóvel já desapropriado pela reparação do dano ambiental que causou.

Entretanto, para o caso em apreço a Corte utilizou o instituto do distinguishing e realizou uma análise minuciosa dos fatos específicos, evitando a aplicação automática da jurisprudência. Tal abordagem, em consonância com o princípio da segurança jurídica, buscou obstar que as decisões judiciais fossem fundamentadas em conceitos genéricos que não fornecessem a solução jurídica mais adequada à espécie.

Ao aplicar o distinguishing, o STJ determinou a inaplicabilidade do Tema Repetitivo 1.204 ao caso em questão, especificamente em situações de expropriação de imóveis. A Corte entendeu ser injusta a dupla penalização do ex-proprietário pela recuperação ambiental de uma propriedade cuja indenização expropriatória já fora reduzida em virtude do passivo ambiental existente.

Em outras palavras, o Tribunal concluiu que o ex-proprietário não tem a obrigação de reparar um dano ambiental causado a um bem que lhe foi retirado por meio de expropriação, cujos ônus, nos termos do art. 31 do Decreto-Lei n. 3.365/1941, ficam sub-rogados no preço pago pelo Poder Público [a título de indenização] para a aquisição do imóvel. Isto é: ao adquirir o imóvel, o Poder Público “já descontou o passivo ambiental do valor pago”, de modo que não se há falar em desembolso de novos valores pelo expropriado.

Por outro lado, o STJ entendeu que seria possível a condenação quanto à possível obrigação de compensar eventual o dano moral coletivo. Nesta circunstância específica, a obrigação ou o encargo não estão diretamente vinculados ao imóvel em si, mas sim às ações ou omissões que lesaram os interesses difusos da sociedade. Inexistiria para o STJ, portanto, sub-rogação no preço.

O aresto do STJ, acerca da responsabilidade por danos ao patrimônio histórico-cultural em casos de desapropriação, configura um marco significativo no direito administrativo pátrio. Proporciona clareza quanto à transferência de responsabilidades, mas também suscita novas questões sobre a gestão e preservação do patrimônio histórico nacional, que muitas vezes são desconsiderados em julgamentos de matéria ambiental.

O julgado não apenas redefiniu os limites da responsabilidade do proprietário expropriado, mas também elucidou sobre a complexa interseção entre o direito ambiental, administrativo e a preservação do patrimônio histórico-cultural.

Ao equilibrar os princípios do non bis in idem, da responsabilidade ambiental e da equidade, o Superior Tribunal de Justiça estabeleceu um precedente jurisprudencial que requer uma abordagem mais contextualizada em casos futuros. Assim, o aresto em questão não apenas exercerá influência sobre futuras decisões judiciais, como também deverá repercutir nas políticas públicas atinentes à desapropriação e à preservação do patrimônio histórico-cultural. Tal impacto propiciará um equilíbrio mais equânime entre os interesses de natureza pública e privada no âmbito do ordenamento jurídico pátrio.

Por: Monique Demaria